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PRISCILIANO E COTARELO
A Universidade Internacional
Menéndez Pelayo organizou em Pontevedra um Seminário sobre
Prisciliano e o priscilianismo que obtivo um grande êxito, no
sentido de que atraiu um público mui numeroso.
Se repassamos a lista dos
conferencistas, observamos que podem agrupar-se em dous
conjuntos, que um daqueles denominou o dos lógicos e o dos
mágicos. Mais propriamente eram o dos especialistas e o dos
profanos. Havia, com efeito, entre eles persoas de rigorosa
formaçom universitária, expertos em distintos aspectos
relativos ao priscilianismo ou às questons conexas com el, e
persoas que nom tinham trabalhado sobre esses temas de modo
sistemático ou com metodologia científica, mas que como
escritores ou oradores se supunham capazes de compor ou
improvisar umha conferéncia sobre algo mais ou menos referente a
Prisciliano e o priscilianismo, que nom implicasse certamente
umha liçom universitária nem umha achega de dados fornecidos
por um investigador senom umha elucubraçom na que o engenho do
conferencista aspirava a engaiolar o público com o seu encanto
persoal. Mesmo algum de entre eles manifestou de plano a sua
falta de conhecimentos sobre o tema até o momento de ser
designado para dissertar sobre o mesmo.
Contodo, se alguém julgou um tanto
surprendentes declaraçons deste tipo, isto nom impediu, como
fica dito, que a gente concorresse ao seminário com grande
curiosidade, em grande número, e, talvez, em parte, atraída
precisamente pola perspectiva das dissertaçons dos
conferencistas menos ou nada especializados na matéria, mais mui
conhecidos como literatos, oradores ou periodistas, cuja imagem
televisiva era mais familiar que a dos historiadores ou
filólogos.
Lar
Cultural
Tampouco creio inteiramente alheio
ao êxito de público o feito de densenvolver-se o seminário nos
locais do Museu de Pontevedra, entidade que, como conseqüência
da laboriosidade e inteligência com que se conduzem os que ali
trabalham e organizam, começando, natural e principalmente, polo
seu Director, chegou a ser o lar cultural mais característico da
boa vila, onde nengum pontevedrés se sente estranho, e aonde
todos acodem como a sua própria casa.
Mais nem a primeira nem a segunda
das circunstáncias apontadas excluem outros poderes de
convocatória, entre os que hai que sublinhar, desde logo,a
própria figura de Prisciliano, que, depois de morto, continua
mostrando eficácia como suscitador de interesse.
Fora dos estudiosos a quem
Prisciliano atrai por razons científicas, a vitima de Tréveris
provoca curiosidade nos profanos, segundo cremos, por várias
causas, entre as que som fundamentais a sua suposta heterodóxia,
que move a simpatia dos progressistas; a sua suposta galeguidade,
que move a simpatia dos nacionalistas; e a sua suposta filoginia,
que move a simpatia dos filóginos. Na realidade, nom nos consta
que Prisciliano fosse heterodoxo, pois o dogma naquela epoca
distava de estar normalizado; nem que fosse galego, e menos
propugnador de um cristianismo céltico, ainda que Galiza foi sem
dúvida agarimo do priscilianismo; nem que o bispo de Avila
tivesse propensom excepcional ao trato com as fêmeas, ainda que,
como tantos outros mestres do cristianismo, começando polo
Divino Mestre, apareça rodeado de mulheres nos momentos
quotidianos como nos momentos decisivos da sua vida e a sua
morte.
Formoso
Espectáculo
Um dos nossos primeiros contactos
com a figura de Prisciliano realizou-se através das liçons do
que foi professor de tantos estudantes galegos, dom Armando
Cotarelo Valhedor, que nom parecia duvidar da ortodóxia, da
galeguidade e da filoginia do decapitado de Tréveris. Dom
Armando escreveu umha peça de teatro, intitulada Hóstia,
na que por primeira vez o bispo de Avila se assoma à cena
galega. Mais tarde, Daniel Corteçom, sem conhecer, segundo
creio, a "pantasia trágico-histórica" de Cotarelo,
escreveu um "tragidrama", intitulado Prisciliano,
no cal se glosam alguns aspectos da vida e da morte do
justiçado. A peça de dom Armando, mui breve, limita-se a
dramatizar os últimos momentos da vida do célebre e enigmático
chefe religioso.
Creio que mui pronto teremos a
oportunidade de ler com comodidade essa espécie de auto
litúrgico, numha nova ediçom ilustrada com explicaçons sobre
os numerosos vocábulos eruditos que contém, tomados das obras
teológicas e históricas daquel tempo. Porque Hóstia é
umha peça didáctica, que nos lembra o teatro humanístico dos
jesuitas do Renacimento e o Barroco em certos aspectos. As
acotaçons principalmente, mas tamém, em menor medida, o
diálogo, sobrecarregam-se com grande erudiçom arqueológica.
Tampouco o galego em que está escrita é popular e transparente,
senom mais bem requintado e nom pouco arbitrário. Mas a obra nom
carece de valor literário, e nom deve ser considerada como
simples recriaçom erudita de um momento histórico. Cotarelo,
fosse pola superior cultura, fosse por umha natural capacidade
cénica, movia habitualmente as personages com mais tento que os
seus contemporáneos e convizinhos. A acçom desenrola-se na
prisom de Tréveris e começa com um diálogo entre o poeta
Latroniano, seguidor do mestre, e o traidor Tértulo. Comparece
logo Prisciliano, e mais tarde Prócula, aos que dom Armando
deixa sós para que podam entoar o seu duo de amor. Podia-se
fazer de Hóstia umha bonita ópera num acto. A
catástrofe é mui vistosa. Polo fundo passa a procissom que
conduz ao suplício os priscilianistas. Vem primeiro o verdugo,
machado ao lombo, acompanhado de dous lictores. Logo, as
vítimas: Felicíssimo, Arménio, Latroniano e Eucrócia, nai de
Prócula. Antes de incorporar-se ao cortejo, Prisciliano
despede-se de Prócula, e, impondo-lhe as maos e recitando a
fórmula sacramental, ordena-a diaconisa. Um formoso desenho de
Castelao que recolhe este momento, ilustrava o cartaz anunciador
dos cursos de Pontevedra. A donzela fai ainda umha tentativa
perto do guardiám da prisom para obter a salvaçom dos
condenados. Mas a procissom do verdugo e os seus vigairos, que
agora, sem aqueles, sai e se desenvolve em sentido contrário, é
prova de que todo se consumou. O pano cai sobre a ária de
Prócula, que execra aos matadores e profetiza a gloria de
Prisciliano, cuja luz será guia da vida da discípula até que
esta poda reunir-se, no além, com o seu mestre.
Para um público devidamente
preparado, umha representaçom fiel desta peça, respeitosa com o
texto, sem actualizaçons que desvirtuem o sem sentido,
constituiria um formoso espectáculo. Se se quer algo mais
popular, mais carregado de interpretaçom social, de palavras
fortes e de erotismo nas relaçons de Prisciliano e de Prócula,
aí está a peça de Corteçom.
A de Cotarelo é quase um drama
litúrgico, um mistério, um oratório, e teria que ser ilustrada
com música arcaica e plástica bizantina.